quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A morte do amigo que jamais conheci

A morte do amigo que jamais conheci

*Cláudio Messias

Passar pela terra, em vida, significa, na prática, transitar por representações daquilo que entendemos como realidade. Realidade. Essa subjetiva marca de identidade pessoal, mais significativa do que aquilo que formalmente atribuímos a impressão digital, pois o que uma cabeça pensa uma mão jamais toca. Ninguém, a não ser eu, vive o que eu vivo, enxerga o que eu enxergo e conclui o que eu concluo.

Tenho uma concepção muito particular sobre o tempo. A imaterialidade da passagem de cada um de nós é a mais concisa definição de tempo. Via de regra ficamos cá, em vida, por mais de cinquenta janeiros. Alguns raros dobram essa média, centenários que são. Não tive, não tenho e quero não querer desejar o centesimal. Prefiro a brevidade, desde que intensa como ora o é.

Em 2014, numa pesquisa conjunta com o professor Joseph Straubhaar, da Universidade do Texas, em Austin, EUA, desafiei, mediante método científico, mensurar o consumo midiático abordando pessoas, do meu convívio, que se encaixam em quatro gerações. Jovens com até 19 anos, adultos com até 44 anos – minha idade, à época -, outra faixa de adultos com até 64 anos e idosos a partir dos 65 anos. As conclusões empíricas de tal levantamento ficaram no plano teórico de meu doutoramento. Mas, a valia epistêmica do experimento foi para a minha tese e incorporou no meu modo particular de entender o tempo da vida.

A conversa vai ficar muito chata se eu começar a falar de teoria e de estudos culturais. Vou ficar no senso comum, falando a partir do e para o saber popular. Mas, não deixarei de citar a cultura, esse combustível que move a vida e é responsável, não tenho dúvidas, pela existência soberana da raça humana. Se um dia, pois, nos destacamos enquanto espécie e através do tempo buscamos a sobrevivência, o fizemos porque nos organizamos socialmente a partir de uma base essencial, que é a cultura. Toda e qualquer projeção de desenvolvimento e progresso para o futuro incerto do tempo, nosso, advém da cultura.

Interessante notar que a vida, aqui entendida como tempo individual de cada sujeito, seja fracionada em quartos. No primeiro deles, aprendemos a ser o que querem que sejamos. No segundo, começamos a querer ser algo que não necessariamente queriam que fôssemos. No terceiro, somos. E no quarto, concluímos se conseguimos ser o que queríamos ou se fomos aquilo que quiseram. Esse ciclo todo pode, resumidamente, ser definido na tríade ser cuidado, cuidar e ser cuidado. Nascemos sob proteção, crescemos protegendo e terminamos ao menos querendo ser protegidos.

A velocidade do tempo é determinada pela forma como concebemos cada uma dessas fases que vão desde o primeiro abrir de olhos até o fechar definitivo. E há contradições nisso. Uma criança, ainda em formação da razão, ignora, na sua ingenuidade, as amarguras e os percalços e, em tese, vive os momentos que, mais felizes, serão parte solidificada da lembrança. Não raro, um adulto suspira, em emoção, ao recordar das boas fases da infância. E quando essa mesma razão, maturada na fase adulta, desintegra-se com a fragilização do corpo, não é exatamente a felicidade que predomina.

Nascemos e morremos sem o domínio pleno da razão. Infância feliz, velhice melancólica. Ser adulto, pois, é fazer a gestão própria do tempo, sabendo administrar as alegrias vindas de um passado não muito distante e a vindoura melancolia de se preparar para a mais certa das etapas de cada um. O tempo, assim, nos lança para uma trajetória, geralmente plena na maturidade que vai dos 20 aos 60 anos de idade.

Olhar coletivamente a humanidade, como fazemos nas amostras de pesquisas no território das ciências humanas, é ignorar as arestas. A rotina nos mostra a despedida de amigos ou conhecidos que sequer conheceram a fase adulta, plena, ou tiveram a oportunidade de experimentar a melancolia de aguardar o fim natural. O tempo desses personagens esgotou arbitrariamente sobre a cultura, sobre a razão. Cada um dos raros e excetos leitores dessas linhas, agora, lamenta ou lamentou a despedida de alguém nessas circunstâncias, poucos dias ou horas atrás.

Essa impotência ante ao tempo, incerto, de cada um remete a desafios cada vez mais profundos das ciências, em especial a medicina. Cobranças sociais ao extremo injustas pedem o prolongamento da vida, como se possível fosse dar uma prorrogação ao tempo. Há, nesse aspecto, inúmeras formas de morte, mas via de regra duas delas esgotam o tempo dessas pessoas das quais nos despedimos dentro do que concebemos como precocidade da vida. Uma são as tragédias, outra são as doenças graves.

No rol de casos cotidianos a incoerência prevalece. Ora sabemos de um comilão e beberrão que explodiu em enfarto fulminante, ora deparamos com magrelos, bem dispostos e avessos a bebidas que somente tiveram o fim, diferente, pelo tamanho do caixão. Amigos alegres, rodeados por familiares, com patrimônio garantido para os dependentes, foram acometidos por determinada enfermidade e em questão de semanas tornaram-se apenas lembrança.

Sou cético em relação a destino e, agnóstico, tenho alicerce na crença de uma força criadora que coletivamente a minha raça define como Deus. Talvez eu seja parte da lembrança de meus familiares e meus amigos quando as pesquisas do genoma humano mostrarem, já no nascimento, o sequenciamento do tempo que cada sujeito tem. Sabemos, hoje, das predisposições que, reconheço, ajudam a dar sobrevida. Eu próprio, em 2015, fui submetido a cirurgia cardíaca para aplicação de quatro pontes de safena e ligação de uma mamária. Não fosse o cardiologista que fez a mesma cirurgia, mas em meu pai, em 2010, e eu enfartaria silenciosamente, uma vez que portador sou se doença cardíaca congênita. A mesma enfermidade que nos iguais 46 anos meus, atuais, tirou, em um sítio na zona rural de Assis, a vida de meu avô, pai de meu pai.

A medicina nos mostra os sinais quanto a longevidade ou não do tempo de cada um, mas não indica nosso prazo de validade. Insuficiente para uma sociedade cada vez mais doente. Minha preocupação, nesse ínterim, hoje, passada a fase de reabilitação pós-cirurgia cardíaca, é se meus dois filhos podem herdar a doença, que é congênita. Exames recentes mostram que “ainda” não. Ainda. E esse ainda é advérbio de tempo, de maneira que daqui a duas décadas possamos ter boas ou más notícias relacionadas à referida herança.

A perecibilidade de cada corpo pode estar indicada no seu rótulo de marco zero, que é o cordão umbilical. Expectativa, pois, que famílias vindouras possam preparar-se para o melhor, que é a saúde plena, e o pior. E isso talvez atenue a dor que nos corrói ao ver uma inocente vida com apenas seis janeiros completos desenvolver não só uma, mas algumas formas de câncer. A mesma sociedade que se comove ante ao caso de um menino assisense internado e em tratamento há um ano, em São Paulo, tem poderes impotentes iguais aos dos médicos. Ambas as partes não sabem o que fazer ante a um cenário em que um corpo novinho em folha, sem vícios ou sintomas das amarguras da vida, tem as células destruídas por causas que a medicina desconhece.

Uma semana atrás um homem de pouco mais de 40 anos de idade teve o corpo transportado de Presidente Prudente a Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul. Um acidente, anos atrás, fez formar um coágulo no cérebro. O tempo, dele, quase esgotou, mas a medicina fez intervenção. Ali por volta de início de setembro de 2016 uma tomografia na cabeça apontou um coágulo e um tumor em formação. E eis que o esgotamento do tempo voltou a dar sinais.

O nome desse homem é Thales. Pacientes, em hospitais, são todos gatos pardos. Ou seja, são pacientes. Roupas iguais, camas iguais, quartos todos iguais, fica a impressão de que todos que ali estão têm o mesmo nome, o mesmo documento de identidade. O que muda, na prática, são as causas que levaram cada sujeito ao leito hospitalar. Ou seja, a maneira como a natureza escolheu dar esgotamento individualizado a diversas formas de tempo.

Thales era trabalhador do campo, forte e falador. Otimista, fazia fé que todos os demais pacientes apresentassem melhora e fossem, futuramente, a Três Lagoas. Lá, iria lhes levar para pescar tucunaré. Ou seja, viver a vida, aqui nesse exposto definida como ato de cumprir com a linearidade do tempo. Meu pai, com 75 anos de idade e acometido por um aneurisma de carótida, era um dos pacientes daquele terceiro andar do Hospital Regional de Presidente Prudente. Sua chance de primeiro resistir à anestesia geral e, depois, suportar a cirurgia para aplicação de uma prótese, era inferior a 5%.

Havia, lá, uma voz que certificava a plenitude de êxito na cirurgia. Era Thales, que emocionava-se com a fragilidade do corpo daquele homem que desde 2010 enfrenta batalhas para manter-se com o tempo ativo. E foi assim que ele assistiu ao trâmite em que meu pai foi para a sala de cirurgia, superou todas as estatísticas então desfavoráveis, teve alta da UTI e retornou para o quarto, agravado por sequelas do aneurisma que comprometem os movimentos do lado direito do corpo e, por consequência, o impedem de falar e ter autonomia para alimentar-se.

Com meu pai no quarto, Thales foi para a cirurgia dias depois. Nos encontrávamos, até então, em circunstâncias típicas de hospital, ou seja, tempo limitado à permanência de visitas e sem condições de, por exemplo, trocar informações básicas, como telefones pessoais e endereços, já que o combinado era, num futuro vindouro, propiciar o reencontro entre aqueles dois pacientes tão afinados na rotina.

Da sala de cirurgia o sulmatogrossense foi para a UTI. Quando meu pai teve alta, dia 11 de outubro, seu colega de internação foi para o quarto. Comemoração das duas famílias, pois nós, apesar do estado crítico de meu pai, findávamos mais uma rotina de semanas no hospital, enquanto os familiares de Thales contavam os dias para igual retorno para casa.

Uma complicação, contudo, fez com que Thales voltasse para a mesa de cirurgia. Novo procedimento, condução para a UTI e, dia 22 de outubro, a notícia: ele havia falecido. Aquele sorriso torto, decorrência do primeiro acidente de trânsito, cessou. O tempo de Thales esgotou, em um tipo de fim provocado pela rotina humana, e não pela natureza humana. E isso faz lembrar uma reflexão que Rozana, minha esposa, fez da vida dias atrás: sabemos, apenas, que nascemos, e acabamos tais quais aquela formiguinha em que pisamos, sem ver, no caminho cotidiano. E para esse tipo de fim não há teoria de tempo que dê conta.



* Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela e na ECA-USP.

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